quarta-feira, 19 de agosto de 2009

o definhar




a chuva intensa dá o aviso de que é melhor não sair de casa. para ele está tudo bem, mesmo com o mais brilhante sol não existe a possibilidade de abandonar o cativeiro. prisioneiro de si mesmo, eventualmente ele abre as cortinas para ver se há alguém fora, embora não saiba mais se apenas para atualizar-se sobre o outro mundo ou se na esperança de alguém vir resgatá-lo.

a casa imunda denuncia o descaso: o chão sujo de bitucas e restos de comida, lixeiros transbordando e as contas acumuladas ao pé da porta. o prisioneiro parece não se importar, como se soubesse que nada daquilo seria definitivo. por um instante, procura por um cigarro e logo se lembra onde encontrar o seu estoque. a bebida já estava em mãos e um longo trago é acompanhado de um delicioso gole de uísque. nunca teve dinheiro para pagar por nada disso, portanto julgava ser tudo obra dos seus captores. tamanha fantasia o impedia inclusive de sentir fome, sendo que não comia há três dias.

o passar do tempo era acompanhado de longas reflexões solitárias. obviamente, a realidade já o havia abandonado e todos os seus pensamentos eram marcados pelo seu sonho de liberdade e por tudo que faria quando finalmente conseguisse fugir do seu cativeiro. ansiava percorrer o mundo e (re)encontrar amores, entregar-se aos prazeres mundanos e quebrar todas as regras. lembrava do sorriso do seus amigos e esperava reencontrá-los, abraçá-los e amá-los como nunca, com o devido amor que merecem. não pouparia palavras nem gestos para mostrar-se ao mundo como alguém livre de barreiras, disposto a apenas viver.

uma leve sonolência o acomete. acredita que provavelmente o drogaram para enfim libertá-lo sem que possa ver o rosto daqueles que o mantêm preso. aos poucos, seu corpo definha e os olhos se cerram enquanto um sorriso de alegria é esboçado. na verdade, o prisioneiro estava morrendo lentamente. os médicos determinaram a causa como inanição, porém não era disso que havia morrido. estava morrendo desde que nasceu: do medo de se arriscar, do medo de ousar dar um passo além, do medo do que os outros pensariam, do medo de fracassar, do medo de ser medíocre; enfim, do medo de não ser aceito.

para sorte do prisioneiro, não foi nada disso que ele vivenciou. nos seus momentos finais, anestesiado pelo próprio desfalecer, ele se sentiu erguido e carregado para fora do cativeiro. pôde, finalmente, admirar a luz da qual se aproximava, a luz que marcava a sua redenção e o seu renascimento. em seu último suspiro, agradeceu a si mesmo pela oportunidade de partir para um lugar em que seria mais feliz...

domingo, 21 de junho de 2009

vende-se um coração



vendo um coração.

não se engane, leitor, este dono não pretende se livrar do coração pela sua má qualidade. acredite, ele ainda pode sentir muito, passar por vários sentimentos. acredite, se tem uma coisa que ele faz bem é sentir demais as coisas.

e então você me pergunta: para que se livrar dele, meu senhor? posso respondê-lo e você haverá de achar a resposta deveras justa. livro-me deste órgão para alguém com mais qualidades e mais capacidade para apreciar seu potencial verdadeiramente. imagino quantos amantes, quantas pessoas poderiam sentir ainda mais a felicidade das coisas pequenas com este incrível artefato que aqui anuncio.

já eu... bom, posso dizer-lhe em poucas palavras, meu bom amigo, que já senti coisas demais nessa vida e não foram coisas boas. eu senti o desprezo do homem, a amargura do ódio e o descaso e vi meu mundo colorido se tornar cinza. nada disso, no entanto, se compara ao poder da rejeição e devo avisá-lo, de antemão, que um dos poucos defeitos do meu coração é que ele encolheu com o tempo, tamanho é seu medo de sentir mais uma vez todas essas coisas. é preciso adestrá-lo novamente, para que possa sentir coisas boas. não será uma tarefa fácil: como um cavalo selvagem, ele não tem confiança nas pessoas, porém eu lhe garanto que valerá a pena.

sim, leitor, eu sei que sua próxima pergunta seria: já que sentes tanto e sabes o que fazer, por que não tentas tu mesmo adestrar teu coração, tolo? desta vez, a pergunta não é tão simples e nem mesmo sei se tenho uma resposta para isso. talvez você devesse olhar para mim, conhecer-me e se tornar meu grande amigo para daí me responder. tudo que sei é que não quero mais amar, amigo. por favor, compre meu coração e me poupe de ter que continuar vendo os sorrisos e me iludindo e quando tudo parece favorável, descobrir que a verdade nunca foi essa, que eu nunca tive a chance.

por fim, só peço que tenha muito cuidado com este item que anuncio. apesar de nunca ter sabido utilizá-lo adequadamente, tenho muita noção do seu valor e espero que você tome os devidos cuidados. manterei contato com o comprador até o fim dos meus dias e em caso de mau uso, o coração me será retornado: não quero espalhar meus podres sentimentos pelo mundo ou seria o nosso fim.

aqueles interessados e capazes de fazer deste mundo um lugar mais feliz, favor procurar-me.

domingo, 24 de maio de 2009

"tudo que é sólido se desmancha no ar" (karl marx)




pulei em busca do meu destino.

logo no início, encontrei os velhos obstáculos mais uma vez à minha frente, os mesmos que me cercaram por toda minha vida. porém, desta vez foi diferente. desta vez, eu consegui passar por todos eles sem me arranhar. senti-me como se fosse imune a todos esses problemas e ri ao perceber o quanto foram banais.

comecei, então, a sentir a suavidade da brisa. ela passou pelo meu rosto, acariciando a minha face e me seduzindo num carrossel de pensamentos tranqüilos quase como se sussurrasse no meu ouvido promessas de uma nova vida. por este breve momento, eu acreditei nela com a mesma intensidade com que sempre acreditei que meu horizonte escondia por trás dele os segredos da felicidade.

toda essa magia envolvente me transformou mais uma vez em criança. inocentemente, eu me agarrei a essa nova realidade e brinquei com todas as novas descobertas que me aguardavam.

decidido a mergulhar nesse mundo misterioso, encarei o meu horizonte gélido e inerte. minhas memórias se desmancharam no ar como cinzas de um passado esquecido e, por fim, acabei eu mesmo me desmanchando na fútil tentativa de ultrapassar minha própria realidade.

mas, em algum lugar, foi possível sentir que aquela esperança de ser feliz ainda existia, porque ela era feita de algo mais que verdades e fatos: era feita de sonhos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

envelheço na cidade


amanheço na cidade.

o sol invade meu quarto, convidativo, enquanto meu corpo resmunga contra a entrada mal vinda. já não durmo tão bem e acordo antes do despertador tocar - esta porcaria não me serve mais para nada. ao levantar-me, sinto pesar nas costas o cansaço acumulado das noites frustradas.

arrumo-me lentamente e saio de casa. durante o caminho, evito contato visual com qualquer pessoa. não tenho interesse em trocar sorrisos e compartilhar pensamentos. não acredito na hipocrisia das pessoas que tentam se convencer do prazer dos dias repetitivos.

cumpro meus deveres e volto para casa. logo que chego, acendo um cigarro e encho meu copo de uísque para aproveitar o único momento de tranqüilidade do meu dia. debruço-me na minha sacada e fixo meus olhos no horizonte, na expectativa de encontrar nele algo que me conforte e embriagar-me de álcool e desejos.

mas não, não há mais tempo para se sonhar. sou o fruto negro da minha geração. não devo sonhar, devo fazer ou perecer. acabaram-se as bebidas e os anseios, as brincadeiras e as ambições. restaram-me uma úlcera e 3 contas vencidas para pagar.

encaro minha realidade e a minha decadência. meu corpo clama por um caixão e minha mente ameaça entrar em colapso. entrego-me ao poder das pílulas para enfrentar sete horas de insônia.

envelheço na cidade.

não há mais o que fazer a não ser chorar as lágrimas amargas que encharcam a minha solidão.

perdi minha expectativas. perdi minhas esperanças. perdi minha vida sonhando com coisas que nunca serão.

domingo, 26 de abril de 2009

encontros casuais





- então... você costuma vir aqui?

- você sabe que sim. e eu sei que você andou atrás das minhas amigas.

- desculpe, é verdade. mas eu não minto, tive uma relação intensa com todas elas.

- e o que isso poderia significar?

- eu estive realmente envolvido com elas até o fim...

- e o que aconteceu no fim?

- nossa relação não tinha mais conteúdo, elas se tornaram tão secas e vazias...

- oh, eu sinto muito. venha, vamos conversar mais um pouco. de alguma forma eu sinto que você precisa de alguém como eu para lhe acompanhar nessa noite.

- que nossa noite seja eterna enquanto dure.

______________________________________


A última gota que posso sorver
nos lábios vítreos de minha amante
me entristece com o fim do romance
eu e minha garrafa de vidro

nosso amor resiste à distância
e ao desgaste do tempo
logo que a vejo cessa o meu tormento
e ela me controla

quero sempre e eternamente mais
na busca pela tranqüilidade sombria
que não encontro senão quando
embebido, enebriado, atordoado

bebo até o fim do copo
até o fim da consciência
quero viver até esquecer
esquecer de tanto beber
o sabor amargo da vida
disfarçado no álcool da bebida

domingo, 19 de abril de 2009

ambições



acordo meio dia e olho para os lados - nenhum sinal de alma viva. levanto e tento chegar à cozinha apesar da tremenda dor de cabeça que me ataca. pelo caminho, desvio de garrafas vazias. bravas guerreiras, lutaram até o último minuto para embebedar todos aqueles que ousaram profanar o seu conteúdo.

na cozinha, bitucas, limão, sujeira e nenhuma comida. não consigo me lembrar quando foi a última vez que comi, mas isso também não importa agora. muito menos me importa quem vai limpar toda essa bagunça. isso não é problema meu.

passo a tarde divagando sobre minha vida, meus planos [ou a ausência deles]. não consigo entrar em consenso comigo mesmo e isso me faz fumar um cigarro atrás do outro.

'como as pessoas são fúteis'. pensamento recorrente. é difícil acreditar que eu me entreguei a esse impulso de viver sem conseqüências, como se não pudesse fazer realmente nada significante a não ser destruir a minha própria vida com flash backs e cânceres de pulmão.

estou determinado a mudar. levanto, visto-me para sair e procurar um pouco de inspiração pessoal. então, o telefone toca:

'oi, vamos pra casa da bi hoje. quer beber com a gente?'

...

'talvez eu possa ser alguém melhor amanhã.'

a porta se fecha e com ela o desejo de algo mais.

sábado, 18 de abril de 2009

fantasia





a fuga da realidade é vivenciada quase que diariamente por várias pessoas [eu sou uma delas]

seja ela um artifício para escapar dos reais problemas do ser humano ou não, pouco me importa: poder voar por entre os meus anseios sempre será um dos meus melhores passatempos.

________________________

experimento a fantasia
para que meus sonhos
me transformem em ser vivo

fujo da realidade
para sustentar-me
do que não posso ter

vivo duplamente
para sentir a dor do que é
e a esperança do que poderia ser

reflexões sobre a vida do estudante independente


[2008]



já eram mais de 11 horas da noite. pensei: 'devo comer alguma coisa, só almocei e comi uns restos da pizza que me deu essa azia maldita'

saí de casa, ainda mais pensativo. deveria comprar cigarros? provavelmente, sim. se fosse comer fora, poderia fumar enquanto esperava. ademais, o final de semana me espera e é nele que eu desconto minha falta habitual de nicotina na semana.

decidi, então, ir primeiro ao posto, para comprar cigarros, e, em seguida, dirigir-me à lanchonete e fazer meu tradicional pedido de um dog prensado na chapa.

tracei um caminho incomum, mais longo, até o posto. refleti sobre minha ida à praia daqui a umas 3 semanas e sobre minha fraquíssima fome.

subitamente, falei em meus pensamentos: 'porra, eu não tô com fome, pra que vou comer? além disso, hoje é sexta e eu vou ficar em casa. cadê a diversão?'

a decisão foi imediata como o efeito do primeiro trago: vou ao supermercado comprar bebida, a comida que se foda.

cigarros comprados, passo ao supermercado. novo pensamento: qual bebida?

poderia ser um vinho barato ou até mesmo uma pinga. lembrei da mensagem que meu pai mandara mais cedo: 'depositei 40 reais na sua conta' aquilo me animou

sem maiores devaneios, pus-me no Gimenes e comprei 10 long necks de Heineken.

17,90. parece justo para quem vai se embriagar com algo decente.

durante o caminho de volta, mais palavras foram surgindo na minha cabeça: 'é, tô indo rumo ao alcoolismo. bom, que se foda, isso eu resolvo quando chegar a hora'

meras reflexões sobre a vida do estudante independente. e ainda há quem diga que não encontramos diariamente um novo dilema a ser enfrentado...

cheers