domingo, 9 de maio de 2010

dia das mães



amélia acorda e, de imediato, já se assusta. o despertador fora desligado e já passa das 9 da manhã. prevendo o que acontece em situações como essa, levanta-se apressada e corre para a cozinha. as surpresas, no entanto, não param por aí. na cozinha, encontra filho e filha lavando a louça e preparando uma salada. do outro lado, o pai acaba de chegar pela porta trazendo consigo um suculento frango assado. mas... será que ainda estaria sonhando ?

- feliz dia das mães, amélia !

abraços e beijos. aquele delicioso cheiro de amor se mistura ao do feijão carioquinha. a mãe, ainda aturdida pela recepção, desaba em lágrimas e se entrega aos carinhos dos filhos e do marido. é um domingo de comemoração, é dia das mães, amélia! juntos, reúnem-se à mesa para desfrutar do banquete e conversar e rir. o filho diz que os amigos mandam lembranças, assim como a chefe da filha e o colegas de trabalho do pai. amélia se sente amada, como toda mãe deveria se sentir e pensa o quanto é bom ser mãe.

ao final do dia, todos saem de casa, menos amélia. nunca gostou tanto de sair e, além disso, fez questão de limpar tudo depois da pequena homenagem. na verdade, o que queria era aproveitar a pouca atmosfera de amor que ainda aquecia aquele lar. sabia que amanhã as coisas seriam diferentes, que voltariam ao normal. sabia que o filho voltaria a trabalhar com os traficantes e seria preso, sabia que a filha voltaria ao bordel e que pegaria mais doenças, sabia que o marido sairia do seu emprego mais cedo para se embriagar e espancá-la mais tarde. sabia que o amor de hoje nunca foi um amor de verdade, era uma pura convenção social.

uma lágrima escorre pelo rosto de amélia. ela queria que todos os dias fossem dia das mães.

domingo, 25 de abril de 2010

o silêncio das auroras



- não vai falar nada ?

- não há nada a se dizer agora e eu vou te explicar por quê: não há, hoje, qualquer entendimento das verdadeiras raízes das relações sociais, do que as torna realmente significativas. pessoas aglomeram-se e acreditam que a chave para estabelecer um vínculo é a comunicação em overdose e a todo momento é necessária a interjeição. nesse ímpeto de integrar-se a um grupo maior, as palavras perdem significado e a individualidade se esvai, criando comunicadores em massa que apenas reproduzem um número limitado de piadas e chavões.

a partir disso, indivíduos não apenas buscam a palavra a todo momento, mas evitam a solidão, essa abominável característica dos excluídos sociais. estar só significa ser desinteressante, por não haver informação a ser transmitida. estabelecem-se, então, as duas bases dos modernos vínculos sociais: a comunicação excessiva, desprovida de qualquer conteúdo, e a proximidade constante.

falta a essas pessoas a idéia de que a solidão é o único meio de autoconhecimento. não há forma de conhecer e julgar o próprio caráter quando cercado socialmente, a consciência requer atenção total para que haja uma efetiva comunicação. a verdade é que quem está realmente sozinho são os outros, eternamente acompanhados. incapazes de conversar consigo mesmos, eles são apenas carcaças de carne vagando pelo mundo, sem qualquer conhecimento crítico da sua própria realidade. mais ainda, incapazes de fazer silêncio, não conseguem apropriadamente encarar o mundo ou avaliar as pessoas que julgam serem seus amigos.

era isso que ele queria ter falado nesse momento, mas preferiu ficar calado para que ela pudesse desfrutar do silêncio. acreditava que o entendimento entre duas pessoas só poderia surgir quando o silêncio entre elas não fosse mais um incômodo e que, assim como o silêncio das auroras, o que viria após esse instante seria o nascimento de algo belo e puro.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

o definhar




a chuva intensa dá o aviso de que é melhor não sair de casa. para ele está tudo bem, mesmo com o mais brilhante sol não existe a possibilidade de abandonar o cativeiro. prisioneiro de si mesmo, eventualmente ele abre as cortinas para ver se há alguém fora, embora não saiba mais se apenas para atualizar-se sobre o outro mundo ou se na esperança de alguém vir resgatá-lo.

a casa imunda denuncia o descaso: o chão sujo de bitucas e restos de comida, lixeiros transbordando e as contas acumuladas ao pé da porta. o prisioneiro parece não se importar, como se soubesse que nada daquilo seria definitivo. por um instante, procura por um cigarro e logo se lembra onde encontrar o seu estoque. a bebida já estava em mãos e um longo trago é acompanhado de um delicioso gole de uísque. nunca teve dinheiro para pagar por nada disso, portanto julgava ser tudo obra dos seus captores. tamanha fantasia o impedia inclusive de sentir fome, sendo que não comia há três dias.

o passar do tempo era acompanhado de longas reflexões solitárias. obviamente, a realidade já o havia abandonado e todos os seus pensamentos eram marcados pelo seu sonho de liberdade e por tudo que faria quando finalmente conseguisse fugir do seu cativeiro. ansiava percorrer o mundo e (re)encontrar amores, entregar-se aos prazeres mundanos e quebrar todas as regras. lembrava do sorriso do seus amigos e esperava reencontrá-los, abraçá-los e amá-los como nunca, com o devido amor que merecem. não pouparia palavras nem gestos para mostrar-se ao mundo como alguém livre de barreiras, disposto a apenas viver.

uma leve sonolência o acomete. acredita que provavelmente o drogaram para enfim libertá-lo sem que possa ver o rosto daqueles que o mantêm preso. aos poucos, seu corpo definha e os olhos se cerram enquanto um sorriso de alegria é esboçado. na verdade, o prisioneiro estava morrendo lentamente. os médicos determinaram a causa como inanição, porém não era disso que havia morrido. estava morrendo desde que nasceu: do medo de se arriscar, do medo de ousar dar um passo além, do medo do que os outros pensariam, do medo de fracassar, do medo de ser medíocre; enfim, do medo de não ser aceito.

para sorte do prisioneiro, não foi nada disso que ele vivenciou. nos seus momentos finais, anestesiado pelo próprio desfalecer, ele se sentiu erguido e carregado para fora do cativeiro. pôde, finalmente, admirar a luz da qual se aproximava, a luz que marcava a sua redenção e o seu renascimento. em seu último suspiro, agradeceu a si mesmo pela oportunidade de partir para um lugar em que seria mais feliz...

domingo, 21 de junho de 2009

vende-se um coração



vendo um coração.

não se engane, leitor, este dono não pretende se livrar do coração pela sua má qualidade. acredite, ele ainda pode sentir muito, passar por vários sentimentos. acredite, se tem uma coisa que ele faz bem é sentir demais as coisas.

e então você me pergunta: para que se livrar dele, meu senhor? posso respondê-lo e você haverá de achar a resposta deveras justa. livro-me deste órgão para alguém com mais qualidades e mais capacidade para apreciar seu potencial verdadeiramente. imagino quantos amantes, quantas pessoas poderiam sentir ainda mais a felicidade das coisas pequenas com este incrível artefato que aqui anuncio.

já eu... bom, posso dizer-lhe em poucas palavras, meu bom amigo, que já senti coisas demais nessa vida e não foram coisas boas. eu senti o desprezo do homem, a amargura do ódio e o descaso e vi meu mundo colorido se tornar cinza. nada disso, no entanto, se compara ao poder da rejeição e devo avisá-lo, de antemão, que um dos poucos defeitos do meu coração é que ele encolheu com o tempo, tamanho é seu medo de sentir mais uma vez todas essas coisas. é preciso adestrá-lo novamente, para que possa sentir coisas boas. não será uma tarefa fácil: como um cavalo selvagem, ele não tem confiança nas pessoas, porém eu lhe garanto que valerá a pena.

sim, leitor, eu sei que sua próxima pergunta seria: já que sentes tanto e sabes o que fazer, por que não tentas tu mesmo adestrar teu coração, tolo? desta vez, a pergunta não é tão simples e nem mesmo sei se tenho uma resposta para isso. talvez você devesse olhar para mim, conhecer-me e se tornar meu grande amigo para daí me responder. tudo que sei é que não quero mais amar, amigo. por favor, compre meu coração e me poupe de ter que continuar vendo os sorrisos e me iludindo e quando tudo parece favorável, descobrir que a verdade nunca foi essa, que eu nunca tive a chance.

por fim, só peço que tenha muito cuidado com este item que anuncio. apesar de nunca ter sabido utilizá-lo adequadamente, tenho muita noção do seu valor e espero que você tome os devidos cuidados. manterei contato com o comprador até o fim dos meus dias e em caso de mau uso, o coração me será retornado: não quero espalhar meus podres sentimentos pelo mundo ou seria o nosso fim.

aqueles interessados e capazes de fazer deste mundo um lugar mais feliz, favor procurar-me.

domingo, 24 de maio de 2009

"tudo que é sólido se desmancha no ar" (karl marx)




pulei em busca do meu destino.

logo no início, encontrei os velhos obstáculos mais uma vez à minha frente, os mesmos que me cercaram por toda minha vida. porém, desta vez foi diferente. desta vez, eu consegui passar por todos eles sem me arranhar. senti-me como se fosse imune a todos esses problemas e ri ao perceber o quanto foram banais.

comecei, então, a sentir a suavidade da brisa. ela passou pelo meu rosto, acariciando a minha face e me seduzindo num carrossel de pensamentos tranqüilos quase como se sussurrasse no meu ouvido promessas de uma nova vida. por este breve momento, eu acreditei nela com a mesma intensidade com que sempre acreditei que meu horizonte escondia por trás dele os segredos da felicidade.

toda essa magia envolvente me transformou mais uma vez em criança. inocentemente, eu me agarrei a essa nova realidade e brinquei com todas as novas descobertas que me aguardavam.

decidido a mergulhar nesse mundo misterioso, encarei o meu horizonte gélido e inerte. minhas memórias se desmancharam no ar como cinzas de um passado esquecido e, por fim, acabei eu mesmo me desmanchando na fútil tentativa de ultrapassar minha própria realidade.

mas, em algum lugar, foi possível sentir que aquela esperança de ser feliz ainda existia, porque ela era feita de algo mais que verdades e fatos: era feita de sonhos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

envelheço na cidade


amanheço na cidade.

o sol invade meu quarto, convidativo, enquanto meu corpo resmunga contra a entrada mal vinda. já não durmo tão bem e acordo antes do despertador tocar - esta porcaria não me serve mais para nada. ao levantar-me, sinto pesar nas costas o cansaço acumulado das noites frustradas.

arrumo-me lentamente e saio de casa. durante o caminho, evito contato visual com qualquer pessoa. não tenho interesse em trocar sorrisos e compartilhar pensamentos. não acredito na hipocrisia das pessoas que tentam se convencer do prazer dos dias repetitivos.

cumpro meus deveres e volto para casa. logo que chego, acendo um cigarro e encho meu copo de uísque para aproveitar o único momento de tranqüilidade do meu dia. debruço-me na minha sacada e fixo meus olhos no horizonte, na expectativa de encontrar nele algo que me conforte e embriagar-me de álcool e desejos.

mas não, não há mais tempo para se sonhar. sou o fruto negro da minha geração. não devo sonhar, devo fazer ou perecer. acabaram-se as bebidas e os anseios, as brincadeiras e as ambições. restaram-me uma úlcera e 3 contas vencidas para pagar.

encaro minha realidade e a minha decadência. meu corpo clama por um caixão e minha mente ameaça entrar em colapso. entrego-me ao poder das pílulas para enfrentar sete horas de insônia.

envelheço na cidade.

não há mais o que fazer a não ser chorar as lágrimas amargas que encharcam a minha solidão.

perdi minha expectativas. perdi minhas esperanças. perdi minha vida sonhando com coisas que nunca serão.

domingo, 26 de abril de 2009

encontros casuais





- então... você costuma vir aqui?

- você sabe que sim. e eu sei que você andou atrás das minhas amigas.

- desculpe, é verdade. mas eu não minto, tive uma relação intensa com todas elas.

- e o que isso poderia significar?

- eu estive realmente envolvido com elas até o fim...

- e o que aconteceu no fim?

- nossa relação não tinha mais conteúdo, elas se tornaram tão secas e vazias...

- oh, eu sinto muito. venha, vamos conversar mais um pouco. de alguma forma eu sinto que você precisa de alguém como eu para lhe acompanhar nessa noite.

- que nossa noite seja eterna enquanto dure.

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A última gota que posso sorver
nos lábios vítreos de minha amante
me entristece com o fim do romance
eu e minha garrafa de vidro

nosso amor resiste à distância
e ao desgaste do tempo
logo que a vejo cessa o meu tormento
e ela me controla

quero sempre e eternamente mais
na busca pela tranqüilidade sombria
que não encontro senão quando
embebido, enebriado, atordoado

bebo até o fim do copo
até o fim da consciência
quero viver até esquecer
esquecer de tanto beber
o sabor amargo da vida
disfarçado no álcool da bebida